Antes disso devo dizer que esta minha ida ao teatro é mais uma volta, porque tinha há muito abandonado as idas regulares e frequentes, para me deslumbrar com a escola da noite. E deslumbrei-me. Parecia que estava a respirar um novo ar, que repentinamente se tinha aberto uma janela sobre o mundo. Uma janela nova que estava para mim fechada a cadeado, perra, enferrujada, velha e gasta. Sabia que se fosse ao teatro iria seguramente entrar numa nova dimensão, que isso iria ser como sacudir um velho lençol que estava empoeirado numa arca. A arca contém o que sei que devo fazer para libertar as palavras, aliás, contém as palavras, e olho para ela todos os dias, tiro tudo o que lá está e penso. O que posso fazer com isto e com aquilo, no fim volto a guardar tudo muito bem arrumadinho e fecho-a, adio para outro dia o desempoeirar dos sonhos, não, ainda não sou capaz. Hoje não.
Mas desta vez peguei sem pensar numa das mantas azuis e sacudi-a. Por acaso calhou-me o teatro, mas foi puramente por acaso, podia calhar uma ida a Lisboa, ou ao Porto ou ao fim do Mundo, mas foi o teatro.
E logo KAFKA. Labiríntico, doentiamente obscuro, pragmaticamente certo.
Já não me lembrava bem, do som das vozes que imita os ruídos de forma tão perfeita, da coragem e talento de quem declama um texto junto ao público com o à vontade de quem diz "bom dia". Durante o tempo em que estive ali sentada esvaziei a cabeça e entrei no mundo que me era proposto, o de Kafka. È sempre gratificante ver como alguém pega num texto e o transforma em teatro, como o desmonta mantendo a sua perfeição original mas travestindo-o com a sua pessoalidade. A atmosfera estava tão perfeita que parecia que estávamos dentro dos livros onde a tragédia e o riso se aproximam.
Gostei particularmente do desespero do cavaleiro que anseia por carvão, daquele desejo mortal, do misto de quem quer psicóticamente uma coisa banal que sem querer se transforma noutra de máxima importância, quase vital e inexorável, como se se não a obtivesse a seguir fosse morrer.
Gostei também do inevitável vazio do homem que, preso no espinheiro, aguardava pelo salvamento de quem não vem. Fez-me lembrar a vida, por vezes parva, ridícula e solitária. Gostei ainda dos diálogos com máscaras, cruéis, quase ensanguentados com tanta ira. Foi bom, foi como renascer, foi inspirador. Vão ver.
A companhia ajudou, quando se vê estas coisas com amigos que valem a pena e que a vida nos fez reencontrar parece que somos capazes de tudo.
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